Introdução – um anúncio que mudou tudo
Assim começava o pequeno anúncio publicado no início de 1894 no semanário ilustrado The Graphic: Um convite aberto a moças “animadas” interessadas em formar um clube de futebol. Ninguém ali podia prever que aquele recorte levaria à criação do British Ladies’ Football Club (BLFC) e a uma conversa muito maior sobre direitos das mulheres.
A correspondência deveria ser enviada à casa de “Miss P.”, em Crouch End, ao norte de Londres – detalhe aparentemente trivial que, no entanto, localiza a cena em um bairro de classe média confortável, repleto de casas vitorianas geminadas. Um endereço onde o correio chegava pontualmente e o carteiro provavelmente já conhecia o sobrenome Smith de tanto entregar jornais.
Família Smith e a misteriosa “Miss P.”
A residência pertencia à família Smith. Phoebe, a caçula, acabaria virando ponta-esquerda do novo time; os irmãos mais velhos, Alfred Hewitt e Frederick, ajudaram com logística, uniforme e agenda de treinos, segundo diversas notas em jornais locais catalogadas no acervo do British Newspaper Archive. Aquela dinâmica doméstica, quase artesanal, contrasta com a profissionalização que veríamos muito mais tarde no futebol feminino – e lembra que grandes histórias às vezes nascem na sala de estar de uma família sem fortuna nem títulos de nobreza.
Ainda assim, o sobrenome mais citado pela imprensa não seria Smith, mas Honeyball – e aqui a trama ganha cor.
Nettie Honeyball: porta-voz, capitã, estrategista
Nettie Honeyball é, até hoje, personagem um tanto nebulosa. A maior parte dos historiadores aceita que “Honeyball” era pseudônimo de Mary Hutson, londrina de classe média, vizinha dos Smith em Crouch End. Ela se apresentou como fundadora, atuou como secretária, capitã e principal negociadora do BLFC. Em todas as entrevistas, falava com desenvoltura, usava bom humor para desmontar objeções e mostrava clara noção de estratégia: precisava de rostos conhecidos, patronas influentes, cobertura de jornais e – detalhe crucial – recursos para alugar campos.

Um perfil sobre sua trajetória pode ser lido na revista de pesquisa esportiva Sporting History Review (edição de julho de 2020), que reúne cartas e recibos assinados por ela. A assinatura oscila entre “N. J. Honeyball” e “M. Honeyball”, pista de que o nome de batismo podia, mesmo, ser Mary.
A chegada de Lady Florence Dixie
Para dar legitimidade e verba, Honeyball convenceu a aristocrata e jornalista Lady Florence Dixie a presidir o clube. Dixie já militava por sufrágio e escrevia para jornais progressistas. Em 1890 publicara o romance utópico Gloriana, or the Revolution of 1900 – hoje conservado na Biblioteca Nacional da Escócia –, onde imagina mulheres conquistando o voto.
O patrocínio de uma nobre dava ao BLFC o verniz de respeitabilidade necessário para que a sociedade vitoriana, tão preocupada com etiqueta, prestasse atenção sem descartar o projeto como “diversão de operárias”.
The Sketch: ironia ilustrada e público curioso
A repercussão veio rápido. Em fevereiro de 1894, o semanário ilustrado The Sketch publicou uma charge satirizando o futuro time: damas com chapéus floridos cercam um árbitro que desmaia dramático; ao fundo, uma jogadora leva um carrinho ao estilo rugby; a legenda ri das “boas maneiras” que atrapalhariam as regras.
A ironia escancarava o choque cultural. Ainda assim, a mesma revista cedeu duas páginas, em 6 de fevereiro, para entrevistar Honeyball. A matéria abre:
“Miss Nettie J. Honeyball é secretária e capitã da sensação esportiva do momento e, se energia e entusiasmo valem pontos, o clube já nasce vencedor.”
O repórter queria saber: “Por quê?”. Honeyball respondeu sem rodeios.
Ela começou pelo básico – “adoramos o jogo” –, mas rapidamente ampliou o horizonte: o BLFC podia contestar a ideia de que mulheres deveriam limitar-se a exercícios “graciosos” e mostrar, na prática, que era possível combinar vigor e elegância. Perguntada se imaginava, um dia, times mistos, devolveu:
“Esse dia ainda está distante, mas é plausível. Não pretendemos rivalizar em força bruta; defendemos a ciência do jogo. E o futebol, a meu ver, é o exercício ideal para promover saúde e graça na mulher.”
A fala, registrada em fac-símile disponível no portal de periódicos da Wellcome Collection, deixa transparecer ambição política. Dixie, ao aceitar a presidência, também enxergava ali um megafone para ideias igualitárias.

Roupa neutra, brinquedos sem rótulo
Honeyball e Dixie já apoiavam campanhas por vestuário sem gênero definido – eco do movimento Rational Dress, que defendia roupas confortáveis contra corsetes apertados. No gramado, adotaram os bloomers (calças largas até o joelho) popularizados por ciclistas progressistas. A escolha provocou comentários ferozes na coluna de moda do Victorian Popular Culture Journal: seria “atrevimento” trocar a saia pela calça?
Hoje, debates parecidos retornam quando atletas questionam cortes de uniforme ou desigualdade de patrocínio. Iniciativas como Let Toys Be Toys (relatório de 2021) mostram como o marketing infantil ainda reproduz estereótipos. A campanha, em outras palavras, continua no mesmo campo.
Recrutamento, dores iniciais e elogios condescendentes
O anúncio de 1894 atraiu quase trinta candidatas; Honeyball riu de “inscrições falsas de rapazes” que tentaram burlar a triagem. Idade média: 19 anos. Primeiras sessões de treino renderam músculos doloridos, mas, em poucas semanas, o repórter de The Sketch descreveu “bom domínio de bola e chutes certeiros”, embora completasse, paternalista, que faltavam “velocidade e força”.

Críticas parecidas ecoam em mesas-redondas atuais: comparação direta com o futebol masculino, sem contexto histórico. Àquela altura, as mulheres estavam estreando numa cultura esportiva que, durante séculos, as excluíra do treinamento sistemático.
A partida inaugural diante de 10 000 pessoas
Em 23 de março de 1895, sol pálido em Londres, o Crouch End Athletic Ground recebeu mais de 10 000 curiosos. Divididas em “Norte” e “Sul”, as equipes jogaram sessenta minutos; placar: 7 × 1 para o Norte. Dois dias depois, o editorial do Evening Standard suspirou: “Esperamos que tenha sido a última exibição”. Reportagem interna disse que chamar aquilo de futebol era “exagero” e rotulou o evento de “grande farsa”.
Mas as bilheterias sorriam. O ingresso custava seis pence’s – quantia modesta, porém suficiente para pagar aluguel de campo e deslocamento.
Turnê nacional, rachaduras internas e o recuo da imprensa
Nas semanas seguintes, o BLFC excursionou: Ashton Gate (Bristol), Gigg Lane (Bury), Springvale Park (Glasgow) e Falcon Cliff (Ilha de Man). Jornais regionais, como o Liverpool Mercury (ed. 17 abr. 1895), registraram públicos de 4 000 a 7 000 pessoas. O corre-corre logístico ficava a cargo dos irmãos Smith.
Porém, em 1896, surgiram fissuras. A goleira Mrs Graham contou ao Hull Daily Mail (19 mai. 1896) que se formara um time rival usando o nome BLFC. Lady Dixie retirou o patrocínio – não queria ver o brasão da família em panfletos concorrentes. Sem dinheiro fixo, os treinos rarearam, e a imprensa, cansada da “novidade”, diminuiu a cobertura.
Trabalho feminino, “salário de provedor” e a greve das matchgirls
Paralelamente, a Revolução Industrial expunha nas cidades uma massa de trabalhadoras ganhando salário – menor que o dos homens, mas essencial. A retórica conservadora culpava essas mulheres por “desordem social”. No livro Striking a Light, a historiadora Louise Raw relata como, em 1888, mais de 1 400 operárias da fábrica Bryant & May pararam a produção química: fizeram passeata de braços dados, cantaram, enfrentaram empregadores.

O mito do “salário de provedor” – um homem bastaria para sustentar a família – servia de álibi para condenar o trabalho feminino. Na prática, a maioria dos lares populares dependia do segundo ordenado.
Ser “lady” na virada do século e a questão moral
No imaginário vitoriano, uma verdadeira lady era discreta, contida, quase imóvel dentro de espartilhos e crinolinas. Futebol, esporte de contato, quebrava esse molde. Honeyball e Dixie, cientes da questão moral, apresentavam as jogadoras como “moças de boa formação” – ainda que várias viessem de trupes de dança e teatro musical. Era tática de sobrevivência: quanto mais respeitável o cartão de visita, menor a chance de conflitos.
Mesmo assim, houve hostilidade. Um amistoso marcado para Glasgow em 1895 terminou em tumulto de campo; a polícia dispersou a multidão, mas o jogo não acabou. Aquilo prefigurava o tratamento dado, anos depois, a manifestações por direitos.
Jogos instáveis, hiato de 1900-1905 e fôlego renovado
Entre 1900 e 1905, o futebol feminino sobreviveu em formatos carnavalescos: partidas beneficentes em feiras, homens fantasiados de “damas” enfrentando jogadoras de verdade, ou vice-versa. O Hartlepool Northern Daily Mail (12 jan. 1906) descreveu um amistoso em Blackpool onde “senhoras” – na realidade, homens com perucas – venceram os “cavalheiros” por 3 × 1.
Esses espetáculos, vistos hoje como farsas, cumpriram paradoxalmente a função de manter mulheres em campo, ainda que por vias tortas. Passado o intervalo, voltariam forças organizadas, especialmente durante o Conflito Global do início do Século XX, quando as fábricas de suprimentos industriais montaram times femininos para levantar moral – mas isso já é outro capítulo.
Considerações finais – o legado que persiste
Do anúncio singelo no Graphic às arquibancadas lotadas em Crouch End, o BLFC provou que o futebol podia ser instrumento de afirmação feminina. Nettie Honeyball, Lady Dixie, Phoebe Smith e tantas companheiras foram pioneiras porque chutaram a bola e, ao mesmo tempo, chutaram a cerca que restringia a participação das mulheres no espaço público.
Hoje, quando vemos ligas profissionais, transmissões globais e jovens atletas sonhando com estádios cheios, vale lembrar que o terreno foi preparado por essas primeiras partidas de gramado irregular, costuradas por voluntárias e financiadas com doações. A igualdade integral ainda é meta distante, mas o percurso – visível em cada patrocinadora que aposta na modalidade, em cada menina que escolhe chuteiras ao invés de ficar na arquibancada – testemunha a força daquela semente plantada em 1894.